CATÁLOGO ACERVO MAM
As duas esculturas de Vera Martins presentes nesta mostra foram doadas ao mam pela artista em 1996. Essas peças, além de revelarem aspectos de forte cunho psicológico, ligados ao universo da mulher, não deixam igualmente de apresentar indícios fortíssimos de uma sutil discussão sobre a pintura. O observador não deverá deixar de perceber que a elegante e sensual justaposição de fios de tecido sobre o suporte de madeira proposta por Vera Martins, remete a uma reflexão sobre o fim do império da tela suporte máximo da pintura durante séculos, desconstruída até seu mínimo elemento constitutivo: o fio.
A produção de Vera Martins se enquadra numa vertente muito característica da arte desta década: aquela que discute temas tão cruciais da Humanidade e que até pouco tempo haviam sido banidos da arte: a morte, a doença, a sexualidade. No trabalho doado para o mam a artista reinventa em chave extremamente singular a sexualidade da mulher, propondo ao espectador novas possibilidades para perceber a questão e fato tão ou mais significativo perceber as inúmeras possibilidades que a arte pode assumir nos dias de hoje.
Tadeu Chiarelli | 1996/1998
O QUE PODERIA TER SIDO, O QUE É
A produção de Vera Martins vem desdobrando-se a partir de uma dificuldade, uma indagação: sendo uma artista que se manifesta no âmbito das artes visuais, como formalizar questões que lhe são tão caras mas que, ao mesmo tempo, fogem das especificidades tradicionais do universo das artes plásticas? Como discutir plasticamente e sem nenhum caráter narrativo questões tão fortemente literárias e dramáticas, vinculadas aos sentimentos de solidão, incomunicabilidade, religião, sexo e morte?
Vera Martins é uma das poucas artistas locais que vem trabalhando com tais questões, na verdade muito pouco valorizadas dentro da corrente principal da arte brasileira contemporânea, fortemente marcada, ou pelas derivações de certa sensibilidade exploratória dos elementos constitutivos da pintura, do desenho e/ou da escultura, ou por um viés pós-duchampiano bastante acentuado.
Mesmo estando muito ligada, como será mencionado a seguir, ao primeiro segmento dessa corrente principal da arte brasileira, a produção de Vera Martins, por suas características primeiramente perceptíveis quase nunca é vista fora dos padrões daquilo que se convencionou chamar, em meados dos anos 90, de arte mórbida.
Sem dúvida, na década passada, aqueles problemas tão do interesse da artista foram abordados no âmbito daquela vaga internacional que, aportando no Brasil no início daquele período, serviu como alavanca para o surgimento de alguns poucos artistas de interesse, entre eles, a própria artista em questão.
Tanto isso é verdade que, passada essa onda, Vera Martins, entre os raros nomes surgidos naquele contexto, continua a desenvolver sua poética de maneira precisa e sem nenhum tipo de alarde.
Na verdade, a dificuldade que a artista colocou para seu próprio trabalho, foi tentar alimenta-lo com todas aquelas questões ligadas aos sentimentos de solidão, impulsos sexuais reprimidos, morte, etc., sem, no entanto, abdicar, igualmente da possibilidade de exploração dos elementos próprios das modalidades artísticas tradicionais, sobretudo aqueles ligados à pintura e ao próprio desenho.
Vera poderia muito bem ter se afastado dessas áreas e procurado em outros meios por exemplo, as seqüências fotográficas, o vídeo, os livros de artista etc territórios menos problemáticos para explicitar seus interesses de maneira menos traumática, uma vez que, artes do tempo, essas modalidades supostamente se adequariam de maneira mais imediata e exata às narrativas às quais aquelas questões fazem referência. No entanto não foi esse o caminho escolhido pela artista.
Porém, operando com os elementos constitutivos daquelas artes do espaço (sobretudo o plano e a linha) a artista viu-se obrigada a exercitar um alto poder de síntese uma vez que, mesmo trabalhando com aqueles dois elementos muito próprios da pintura ela se recusou sempre a operar naquele território por meio da produção de formas analógicas. Se assim o fizesse, muito provavelmente Vera Martins teria produzido fortes pinturas alegóricas, muito ao gosto de um certo gosto que também teve seu apogeu na passagem dos anos 80 para os 90.
No entanto, Vera Martins parece ter aprendido muito bem as lições de artistas brasileiros mais velhos como Amílcar de Castro, Mira Schendel e outros que lhe demonstraram ser perfeitamente possível, e desejável, interpretar qualquer sentimento existente no mundo por meio da operação daqueles dois elementos estruturais do desenho e da pintura.
Assim, partindo do plano/tela e, dele, retirando seu elemento mínimo a linha/fio , a artista tece e desfia suas alegorias sobre o sexo e a morte, sobre a plenitude e o abismo, sobre o sagrado e o profano, sem fugir dos limites que ela mesma se impôs, a partir da tradição que para si elegeu.
A produção que Vera Martins agora traz a público demonstra de maneira inquestionável o quanto de singular possui seus trabalhos, concebidos a partir de uma ideação que parece querer englobar em suas obras extremamente sintéticas e, ao mesmo tempo, carregadas de ressonâncias simbólicas, tradições da arte brasileira dos últimos 50 anos, ligadas tanto às vertentes construtivas quanto a Farnese de Andrade.
Tadeu Chiarelli | 2002