FIOS DE ESPERANÇA
A linguagem artística de Vera Martins reflete instâncias primordiais da condição humana, fala da vida, da sexualidade, da morte, sem contudo se submeter a um viés narrativo. Suas pinturas e esculturas expressam uma potencialidade de signos de modo enxuto e conciso, deslocando os significados e articulando-os no âmbito das questões plásticas em que se inserem. Essas questões, que recentemente vêm sendo mais e mais depuradas, se encontram, desde há muito, ligadas sobretudo a velhas inquietações relacionadas com a morte. Por muito tempo ela visitava cemitérios, em especial o da Freguesia do Ó, em São Paulo, fotografando com persistência as paredes repletas de gavetas funerárias justapostas, diminutos quadrados sempre iguais, sempre regulares, nos quais uma pequena fotografia, um nome, uma vela, pretendem resguardar uma identidade para sempre perdida.
Em pinturas anteriores, a marca tumular se fazia muito presente, pois os fotogramas se transfiguravam, adensando-se na tela como matéria macerada e impregnada de coloração sombria, numa tangente que, pela viceralidade com que aborda a inescrutabilidade do drama humano, se aproxima de artistas como Beuys e Kiefer. Por outro lado, a forma quadrangular repetitiva é um dado de geometrização, que tem uma matriz forte na herança construtiva brasileira. O gesto da pintura amalgama essas tendências, e agrega, nas últimas obras, uma sutil filiação barroca, que também remete a nossas raízes culturais.
Os significados, se ainda hoje mantêm uma permanência na obra, cada vez mais vão se esvaindo enquanto referências incisivas, para se manifestarem de maneira fluida e ambígua. Ao emitirem, vez por outra, vibrações indicativas, ainda possíveis de serem detectadas, tendem a se sublimarem enquanto ritual, pois as relações simbólicas passam a aludir à precariedade visceral da vida, à interface silenciosa da morte, à perceptibilidade de uma outra transcendência e a percepção aguda da impossibilidade de organizar a transitoriedade do ciclo vida enquanto o círculo do eterno retorno.
A mobilidade instável dos significados transpira através da obra, tanto nas pinturas como nos objetos, mesmo quando os signos se dão a reconhecer, como nos olhos, nas bocas, nas flores que brotam das estruturas formalizadas. Por isto mesmo, soluções plásticas diferenciadas surgem em vários momentos do trabalho atual. Às vezes as telas são negras, apenas ponteadas por pequenos pavios, sopros de luz na escuridão. São minúsculos fios brancos esgarçados de fios da lona negra tingida, suspiros a sussurrarem acerca de alguma esperança de vida, que retomam sua forma primeira, anterior à tecelagem.
De outras telas, em lona crua, uma sensualidade pusilânime brota das flores secas, indicativas de uma enigmática exuberância da vida que já não sabe de sua condição morfética, ao abrirem-se as pétalas para seu interior onde se configuram segmentos do corpo: um olho, uma boca, um umbigo. Noutro trabalho a flor se fecha sobre si mesma sobre uma lápide, se nega ao olhar, denunciando uma contração glacial da feminilidade. Noutros ainda, a predominância do negro enfatiza a putrefaciência da morte, mas dali mesmo ressurge uma reminiscência de dentro da flor, um sopro de vida que não se esvai, não se entrega.
Se as pinturas - e também os objetos planares têm com o espectador uma relação de frontalidade, os objetos escultóricos buscam outras áreas de atuação desta relação, através de soluções que falam das mesmas idéias, mas que, ao requisitarem um olhar que os circundem, agregam uma disponibilidade que reincide na fluidez e precariedade dos significados. Esses objetos, estruturados como bancos retangulares sem assento, de alturas diversas, são recobertos, vestidos mesmo, por uma tecitura compacta, mas não homogênea de fios de lona desfiada, uns mais longos, outros nem tanto. Num processo inverso ao da tecelagem, é o desfazer da trama do tecido que produz a tapeçaria. Não se trata aqui da lenta fiação de Penélope que dribla o tempo, mas de uma abordagem que, sem negá-lo, congela o tempo. No topo dessas obras, a tapeçaria abre-se em flor singela de quatro pétalas. Pelas laterais os fios escorrem simples e compactos, num drapeado mole e desigual que lembra a dignidade suave de uma imagem barroca primitiva quase a bailar. Essas esculturas, umas brancas e outras pretas, vultos ensimesmados em oração, adquirem uma conotação de passagem, de uma liberação do inferno, de morte, renascimento e transcendência. Mas não há benesse e tranquilidade possíveis. Se as esculturas brancas aludem a uma fulguração, basta ter em mente que apenas na cor se distanciam das negras, como duas faces de uma mesma moeda, e que sua luminosidade é tão opaca quanto a destas. No triunfo de sua expressividade, improvisam uma analogia carnavalizante com os Parangolés de Oiticica, numa orgia perversa que guarda para si alguma lembrança romântica que lhe impede de destruir todas as esperanças.
Stella Teixeira | 1998