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VERA MARTINS - A VIOLÊNCIA SOB A DELICADEZA

 

 

A onda de construções e reformas de instituições dedicadas à arte contemporânea - museus, centros culturais e galerias -, ocorrida ao longo das últimas duas décadas, acompanhada da instalação de um mercado de arte cada vez mais ávido de novidades, tem dinamizado para o bem e para o mal a produção artística. Para o bem quando se traduz em incentivo aos artistas para realizar projetos há muito engavetados, possibilitando-lhes apresentar, e avaliar, os trabalhos em condições aceitáveis, pois não há dúvida que a exposição é um dos pontos altos do processo de produção e circulação das obras, e animando-lhes a prosseguir adiante com intensidade e profundidades ainda maiores. Para o mal, quando a vontade de se engajar a qualquer custo nesse processo leva-os a se confundirem, desviarem-se de suas rotas, farejando ansiosos a possibilidade da fama, de resto quase sempre fugaz. Nada a lamentar quanto a esses, caídos nos intrincados ardís do jogo da arte. Mas há, entre os artistas, aqueles mais determinados que, indiferentes a tudo ou simplesmente movidos por um ritmo inabalável, o que não quer dizer que essa condição não os aflija, seguem um caminho particular, solitário e cujos resultados, quando vêm à tona, espantam pela segurança e singularidade, predicados que fazem limite com a surpresa, com o inesperado. Esse é, precisamente, o caso de Vera Martins. Vamos a ele.

 

A poética de Vera Martins começou a ganhar forma mais nítida quando, há alguns anos atrás, ela se voltou sobre um dos fundamentos da pintura: o tecido  lona, linho e variantes  esticado sobre bastidores de madeira. Ao invés de fazer do plano de tecido tensionado e suspenso diante de si o suporte de projeção de imagens, das infinitas narrativas produzidas por pincéis e tintas, como é comum entre os pintores, a artista, afastando todos esses elementos e procedimentos viu-se diante da tela, só. O tecido claro, branco, branco sujo, creme, cinza claro, com sua trama mais ou menos grossa, a topografia reticulada mais ou menos perceptível, chamou sua atenção, passou a ser o alvo, a matéria por excelência da sua investigação. O passo seguinte deu-se com a manipulação do tecido, desfiando-o, desfazendo-o, quase a demonstrar euclidianamente, o plano como o resultado do acúmulo ordenado de linhas enredadas umas nas outras, produtoras, de acordo com sua natureza dura ou macia, grossa ou fina, impermeável ou porosa, transparente ou opaca, de produto adequado a infinitos usos.

 

Em Vera Martins o uso da tela deu-se pelo reverso. Como que caminhando no sentido contrário, a artista passou a desfazer o tecido chegando ao seu elemento primordial: a linha; uma operação com algo de Penélope e seu sudário, um rastreio até a essência de um ofício ancestral, intimamente ligada a produção do tempo e, ademais, tradicionalmente feminino. Não será o caso de discorrer sobre os mitos que comprovam a transcendência e longevidade dessa prática, a começar pelas três Parcas, por Cloto, a responsável pela fiação da linha da vida, Átropos, que decidia o ponto de corte, sua duração, portanto, e Láchesis, que as distribuía pelos espíritos. Para o que nos convém, vale considerar, de olho nas peculiares pinturas/objetos produzidas ao longo desse processo que, talvez inconscientemente, a artista retornava ao caminho trilhado por sua própria mãe, cuja faina infantil numa aldeia portuguesa comprendia a produção artesanal de tecidos em todos os seus passos: da fibra obtida do caroço estourado do algodão suspensa nas pontas dos dedos para atentamente alimentar o fuso que a torcia até convertê-la em fio. Um exercício onde a precisão conjuga-se com a delicadeza dos gestos, a leveza como pré-requisito para a obtenção da firmeza e homogeneidade do fio.

 

Da fibra ao fio, da linha ao tecido, as pinturas e objetos produzidos por Vera Martins através do tecido/suporte da pintura, carregam consigo essa longa tradição, expressando-a através de fendas e buracos abertos por corte, esgarçamento ou violação explícita das superfícies retesadas, ao lado de pequenos poços altos de onde transbordam longas cabeleiras, num jogo de lembrar a relação que a arte mantém com o corpo, com a vida. Embora elementos femininos sobressaiam, esse amplo e surpreendente conjunto evoca a atração entre corpos que se complementam, o que se confirma através de incontáveis alusões como as fissuras mencionadas, a recorrência de pelos e fios de cabelos, além de apêndices discretos e enigmáticos. Uma sexualidade latente embora longe de ser ostensiva, sem jamais incorrer em narrativas sensuais.

 

Vera apresenta-nos corpos sombrios como a multidão ordenada de mulheres muçulmanas, todas elas envoltas em burcas, embuçadas, uma das fotos mais impressionantes entre as que afixou no mural de seu atelier. Mulheres amordaçadas, corpos encobertos de cima abaixo. Reforçando a ideia de silêncio, de opção pela clausura, a recorrência de cores escuras, do preto, como também a sobreposição de camadas de tecidos realizados em tramas diferenciadas, criando velaturas onde jazem, aprisionadas, flores e pequenos arbustos ressecados, lápides anônimas.

 

Um halo de tristeza perpassa grande parte desses trabalhos, uma noção de melancolia de que ela se distanciou quando deu um outro e supreendente encaminhamento a sua investigação. Recuando à linha, Vera passou a valer-se dela como instrumento, como se verá logo adiante.  Coerente com a originalidade de sua pesquisa, a artista prosseguiu indiferente a pincéis, chegando a um outro modo de deixar sua marca sobre a superfície da tela. Nessa altura convém ter em mente que, na qualidade de instrumento, o pincel vale como extensão da mão, do braço e do corpo. Somos nossos gestos, acontecemos através deles, vale dizer, irradiamo-nos em direção ao mundo e as barreiras encontradas, das matérias às situações, faz com depois recolhamo-nos modificados. Existem gestos diretos, quando travamos contato com uma determinada matéria para modelá-la, apalpá-la, perceber seu peso, textura, calor, acariciá-la. E existem gestos indiretos, mediados por instrumentos, como acontece com uma faca, lápis ou pincel, que atuam na qualidade de encompridamento dos nossos braços e mãos. Os vários tipos de pincéis favorecem e ensejam os gestos mais variados, do expansivo voltado ao preenchimento de grandes áreas, como era comum em Henry Matisse; o gesto incisivo com que Lucio Fontana, brandindo a extremidade de madeira do pincel, ou uma faca, perfurava a tela; a meticulosidade com que Jackson Pollock avaliava a viscosidade da tinta que encharcava o pincel, para então derramá-la sobre a tela, sem nunca tocá-la diretamente. Em qualquer caso, e não apenas nesses, o pincel, na qualidade de fronteira mais avançada do do gesto, fecunda o território branco da pintura. Foi assim que, evitando o procedimento convencional de pintar fazendo uso de pincéis, Vera Martins, valendo-se das linhas obtidas pelo desfiamento dos tecidos, inventou para si um instrumento para a produção de suas pinturas: chicotes.

 

Numa operação em que o ritmo junta-se ao cálculo, a artista vai golpeando com um chicote entintado a tela deitada sobre uma mesa. Ela pode girar sobre uma tela quadrada, produzindo-lhe aberturas circulares, atacar lateralmente uma outra de formato retangular, um lado de cada vez, deixando-lhe ao longo do ponto médio uma esteira de brancura, ou fustigar uma terceira por todos os lados, obtendo uma textura cerrada. As texturas variam: vibrantes e tortuosas como uma cabelereira embaraçada ou uniformes como a pelagem de um animal. A contemplação dessas soluções leva inevitavelmente à reconstrução dos gestos que as produziram. E o elenco de gestos por parte de quem brande um chicote traz consigo a compreensão da ductilidade da linha, do modo como a mão, empunhando o cabo, arremessa a linha entintada através de um golpe brusco e violento, fazendo-a descer em linha reta, batendo de chapa no plano da tela. A força e a direção do braço espraia-se pela linha como se ela estivesse montada numa onda fulminante e instantânea. O impacto da linha fica marcado sobre o branco da tela como igualmente um filamento vermelho se eleva de uma pele vergastada. A brutalidade da ação, o ímpeto absolutamente controlado encontra no som seco resultante do impacto a verdadeira amplitude ambiental desse processo. E as sucessivas linhas, retilíneas, sinuosas, torneadas, serpentinadas, vibrantes, variáveis em suas espessuras, que se vão depositando sobre a tela, ao passo em que nos encanta pela delicadeza, fala-nos do esforço, determinação e disciplina para se lograr obtê-la.

 

 

 

Agnaldo Farias | 2011

 

 

 

 

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